(Vencedor do 8º
Concurso Literário de Suzano – Edição Cora Coralina)
Eu morri em uma época
complicada. Cheguei ao céu em tempo de política. Já na portaria do céu, três
anjinhos sorridentes tentaram comprar o meu voto, me oferecendo regalias, nuvens
macias para descansar, cestas básicas pós-morte contendo vela, rosário e
orações extras do banco de oração celestial, estas coisas que todo morto
precisa.
No começo eu me senti em
casa, como bom brasileiro que sou, estava acostumado com esse tipo de
tratamento. Pensei que fosse pegadinha do demônio, para testar minha
honestidade, então recusei às ofertas e entrei na fila, que há esta hora, já
dobrava o quarteirão.
Conforme a fila andava, os
simpáticos anjinhos trabalhavam de cabo eleitoral, distribuindo santinhos
(literalmente!), e abanando bandeirolas dos candidatos a gerente do céu. São
Paulo e São Pedro pareciam ser os mais fortes, mas eu reconheci também as fotos
de São Judas, São Marcos e São Mateus.
Na portaria, pouco antes do
portão dourado que dava acesso ao paraíso, haviam outdoors dos candidatos apoiados por políticos famosos. Do meu lado
direito estava a imagem de São Paulo ao lado de Adão e Eva, dois representantes
da raça humana. Do lado esquerdo aparecia São Pedro segurando o cajado de Moisés,
sorridente, estampado na frente da imagem do Mar Vermelho aberto.
Volta e meia os portões se
abriam, e carros munidos de alto-falantes, pintados com a foto dos candidatos,
saíam para abastecer o tanque de brisa. As músicas de campanha não eram muito
diferentes das daqui da Terra. Fulano é o melhor, Sicrano tem as melhores
soluções, Beltrano é o que vai trabalhar pelo povo celestial.
Um passo atrás, uma pequena
legião protestava pedindo mudança de poder, um voto de confiança para a
oposição, neste caso São Paulo, e apontavam alguns deslizes de São Pedro na
atual administração. Eles alegavam ter documentos que provavam a influência do
porteiro do céu no escândalo do mensalão das orações. Por outro lado, os cabos
eleitorais de São Pedro, anunciavam ter gravações em que São Paulo aparecia com
as cuecas cheias de nuvenzinhas, aceitas como suborno para facilitar a vida de
uma igreja em um processo licitatório.
Naquele tempo em que fiquei
na fila, ouvindo uma porção de barbaridades e realmente me sentindo em casa,
tive dúvidas se aquilo realmente era o céu. Chamei um dos esbeltos arcanjos que
se postavam em frente ao portão, um de cada lado, como se fossem escudeiros
reais, desses que se vê em filmes da época medieval, e perguntei se não seria
deselegante de minha parte, descer para dar uma espiadela no inferno.
Munido de um certo ar de
curiosidade, mas sem tempo para discutir, o arcanjo concedeu-me o desejo. Me
acompanhou até um dos elevadores celestiais, onde a fila não era menor do que a
da entrada do paraíso. Enquanto lá permaneci, percebi com estranheza, que o
elevador lá de cima não se prendia a cabos de aço, como eu estava acostumado a
ver aqui na Terra. Um arrepio gelado percorreu minha alma (pois já não tinha
corpo), e eu quase desisti da empreitada, mas quando olhei para trás e vi que a
fila atrás de mim tinha aumentado mais do que o dobro, resolvi seguir em
frente.
Finalmente, chegada a minha
vez, entrei no elevador flutuante, ainda com o pé atrás, mas seguro de que, já
que eu estava no céu, a coisa devia funcionar milagrosamente. Observei a placa
colada na parte superior da porta onde se lia a lotação máxima: 10 almas de
cada vez. Tentei olhar em volta, mas estava tão apertado que não pude sequer
ver a luz por entre as almas. Imaginei umas quinze ou vinte almas junto com a
minha no elevador.
De repente, começou a ficar
quente. Foi até confortável para mim, por que achei o céu demasiado fresquinho,
e bem que gosto do calor das praias da Bahia. O problema é que além de ter
ficado quente e escuro, o elevador começou a balançar, e já não tinha mais
aquele aspecto angelical de antes.
O pânico foi se espalhando
entre as almas enfiadas no compartimento apertado, até que a descida chegou ao
fim. As portas se abriram lentamente, e o cheiro do enxofre já era forte o
bastante para fazer com que todos espirrassem ao mesmo tempo, então eu, todo
suado e empapado de meleca de nariz, desci do elevador.
Logo na recepção, pequenos
cramunhõezinhos distribuíam docinhos aos recém-chegados. Um demônio adulto, que
aguardava às portas do elevador, nos acompanhou até o balcão de cadastro, na
recepção, onde fui gentilmente atendido (sem demora) por duas demônias loiras e
siliconadas.
As portas do inferno não
eram menos bonitas que as do céu. Os portões de bronze com muitos diabinhos
alados entalhados fizeram-me lembrar os anjinhos do paraíso, e a todo o
momento, eu ouvia uma caixa de som que chamava os funcionários de Satã,
educadamente em uma voz feminina, que se dirigissem a certos setores infernais.
Não tardou para que o Tinhoso
em pessoa se apresentasse, trajando um elegante terno de cetim negro, sapatos
lustrados e com um cravo vermelho na lapela. A maioria do pessoal suspirou,
admirados coma fineza da figura. Eu fiquei quieto, apenas observando.
Depois de um discurso cheio
de pompa e circunstância, o Belzebu se dirigiu para o portão principal e abriu
uma frestinha, deixando aparecer a maravilha lá dentro do seu reino. Todos os
pescoços se espicharam para enxergar, o que parecia mesmo ser um mar azul como
anil, que encontrava ao longe uma faixa de areia amarela como ouro. Apenas o
céu do inferno não aparentava tão natural como o céu propriamente dito, tinha
um tom um pouco avermelhado demais para um céu, era como um pôr de sol de um
verão ardente.
Diante daquela visão, todos
se aproximaram mais do Cramunhão, chegando a beirinha do portão bronzeado e,
como eu sempre fui assim magro e minguado, fui empurrado para o finalzinho da
fila.
Sorte a minha ter ficado
mais perto do elevador! Mal os pobres coitados se dobraram para ver melhor a
paisagem infernal, que o Cramunhão se contorceu, esticou a pata peluda no
traseiro das almas curiosas, e derrubou mais de uma dúzia. Depois se virou para
os que corriam apavoradas, esticou a mão mais peluda ainda, e agarrou mais meia
dúzia pelo colarinho, lançando-os direto no subsolo.
Quando eu alcancei a porta
do elevador, dois recepcionistas do Demo ainda tentaram me agarrar, mas eu me
debati feito lagartixa, e mais do que depressa apertei o botãozinho azul rumo
ao céu.
De volta ao colégio
eleitoral celestial, tratei de me filiar imediatamente em um partido político,
o qual nem ao menos me recordo qual foi. O fato é que hoje, descanso em minha
nuvem (que divido com mais três almas penadas), ajudo nas tarefas celestiais e
nem sequer reclamo das filas. Como bom brasileiro que sou, trato de não ver nem
ouvir, e muito menos falar, coisa alguma.
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